R.I.P. MTV BRASIL: Do pioneirismo na linguagem televisiva às saudosas lembranças

[Por Rafael Gushiken]

MEMORABILIA

O assunto rendeu muito, justamente porque a transmissão da MTV Brasil concedida pela Abril Radiodifusão, foi um verdadeiro marco na história da televisão brasileira. Se por um lado, foi pioneira em ser a primeira emissora de TV aberta segmentada e direcionada ao público jovem, por outro lado, também inovou com muita ousadia e experimentação na linguagem visual e comportamental. Exemplos nítidos tanto nos videoclipes dos artistas e nas vinhetas nonsense, como no jeito descolado dos VJs, cada um com um estilo próprio, que criava uma identificação com o público.

Depois do anúncio oficial do fechamento, o saudosismo imperou na grade de programação, com os especiais My MTV, apresentados por praticamente todos os VJs que ajudaram a fazer a história da emissora. Isso foi uma ótima oportunidade de vê-los (e revê-los) contando todas as suas experiências, curiosidades e momentos marcantes.

Outra oportunidade de ouvir muitas revelações dos bastidores da emissora foi por meio da cobertura da Mídia Ninja que, no último dia da transmissão, andou pelos andares da sede e entrevistou as pessoas que ajudaram a construir o canal atrás das câmeras, e que também são muito relevantes para essa história, como o Zico Góes (diretor artístico e programação), André Vaisman (produtor-chefe) e Walter Pascotto (diretor de operações).

E por parte da audiência, os telespectadores que acompanharam essa trajetória e agora se sentem “órfãos” dessa MTV que aprenderam a admirar, muitos, voluntariamente, começaram a agir para a preservação dessa história.Exemplo disso é Marco Antonio, criador do grupo Primórdios da MTV no Facebook, e também vem contribuindo na conversão em arquivo web dos programas “My MTV”, para subir em seu canal pessoal do YouTube: “No My MTV, última produção do canal, ficou evidente um ingrediente fundamental: a construção coletiva da identidade pela equipe e como isso se transformou no tempo. Quem vem por aí, tem muito que aprender com a experiência da MTV. É uma questão de justiça preservar essa memória” – relata o próprio.

Baseados nessas histórias relatadas por todos, o Palco Alternativo, também em clima saudosista, lista, a seguir, fatos e curiosidades que marcaram essa MTV Brasil, que criou uma história e identidade na televisão brasileira. Confira!


1. O início e o encerramento das transmissões

Todos já sabem que no dia 20 de outubro de 1990, foram iniciadas as transmissões da emissora através do canal 32 UHF (em São Paulo), com a aparição da Astrid Fontenelle gritando – “Está no ar, a MTV Brasil” – e depois a entrada da Cuca Lazarotto apresentando o primeiro clipe, “Garota de Ipanema” interpretado pela Marina Lima.

Porém, poucos sabem, que nem tudo deu certo no começo: houve um atraso de quase 20 minutos pelo horário previsto, às 12h00, da entrada do canal no ar. Há testemunho sobre isso pela própria cantora Marina: “Eu fiquei esperando a transmissão lá do Rio, onde morava na época, houve falhas e um atraso. E isso me deixou mais ansiosa em querer ver meu clipe inaugurando a MTV Brasil, foi um privilégio para a minha carreira, saber que faço parte dessa história”.

O encerramento das transmissões, como previsto no dia 30 de setembro, foi marcado por muita emoção novamente. E mais uma vez, estavam as duas VJs presentes para seguir o protocolo do início, dessa vez com a Cuca anunciando o último videoclipe, “Maracatu Atômico” interpretado por Chico Science & Nação Zumbi e, em seguida, a Astrid encerrando, ou seja, a última a aparecer: “Eu fui a primeira a acender a luz, e nada mais natural que eu chamasse na chincha essa ‘responsa’ pra mim mesma, eu quero ser a última a apagar”.


2. Avenida Professor Alfonso Bovero, nº
52, Sumaré, São Paulo/SP: o endereço MALDITO

A ex-VJ Cuca em seu My MTV, relembrou um programa e uma pessoa ilustre que esbanjou muito talento como VJ também, a cantora Rita Lee com o seu TvLeeZão, programa em formato de variedades, que ora tinha interpretações dela, e ora a cantora fazia entrevistas com convidados. Um episódio em particular que Cuca cita sobre este programa, foi o incêndio ocorrido no estúdio onde era gravado, que consequentemente levou ao fim dele: “Isso foi muito marcante para mim, porque quando eu iria ter uma participação no programa da Rita, aconteceu esse incidente”.

Esse incêndio levou à criação de um mito macabro do local, pois, no mesmo prédio no bairro Sumaré, em São Paulo, onde a MTV Brasil se instalou, fora outrora a sede da TV Tupi, a primeira emissora de televisão no Brasil. E nos tempos de Tupi, também ocorreu um incêndio, em outubro de 1978, levando à destruição de equipamentos e tirando emissora do ar por alguns minutos. Além dessa coincidência dos incêndios, outra similaridade entre as duas emissoras é que ambas tiveram o seu fim pelos mesmos motivos de crise, falência e etc. Será que a Avenida Prof. Alfonso Bovero, nº 52, é um endereço maldito? Superstições à parte, “fica a dica” caso outra empresa for se instalar nesse local.

3. Os genuínos VJs

Do primeiro time de VJs, todos se lembram, se identificam e ainda comentam o jeito engraçado e maroto de Thunderbird – “Olá, amiguinhos” –, dos trejeitos ‘metaleiro’ de Gastão, dos rostinhos ‘capa Capricho’ de Cuca e Maria Paula e o – “Salve, salve, simpatia” – de Astrid, esta, praticamente, a MTV em pessoa.

Cada um tinha um estilo próprio, de acordo com os seus gostos musicais. Ainda que inexperientes, eles representavam algo inédito e inovador para a televisão brasileira, o descompromisso de falarem e se comportarem do jeito mais natural e jovial possível, e assim criou uma rápida identificação e até uma certa intimidade com o público. Tanto que muitos deles ainda são ídolos e referências até hoje, por mais que tenham ido para outras emissoras.

Há outros que antes de se tornarem VJs, trabalhavam atrás das câmeras como produtores. Exemplos como Fábio Massari, quefoi beneficiado pelas ausências recorrentes de Thunderbird, assumindo a apresentação do programa Lado B, que o caracterizou para sempre como uma enciclopédia musical e que lhe rendeu o apelido “Reverendo”, dado pelo próprio Thunder.

Assim também foi para Soninha Francine, que já integrava a equipe desde o primeiro ano da emissora, mas só em 1994, devido à saída de muitos VJs da casa, começou a trabalhar como produtora e apresentadora concomitantemente. Um dos programas que assumiu foi o Território Nacional, dedicado a videoclipes de artistas brasileiros. A já conhecida filha do cineasta Luis Sérgio Person, Marina Person, também começou como produtora do programa Cine MTV,e não demorou muito para apresentá-lo, sendo que o assunto, cinema, já estava em seu sangue.

O tape do teste de Cazé Peçanha foi o mais exibido na programação. A imagem dele segurando a placa com o seu nome “Carlos José”, ainda com os longos cabelos, registrou o retrato do “antes e depois” do estrelato de um VJ. O apelido “VJ Pão” dado pelo próprio Cazé ao Edgard Picolli, também estigmatizou o rapaz por sua aparência atraente. Mas, beleza à parte, Edgard possuía uma bagagem de conhecimento musical, pois já tinha um histórico de radialista e havia trabalhado na 89 FM – Rádio Rock.

4. Os videoclipes, a programação e o jornalismo

Na cobertura realizada pela Mídia Ninja, foi falado sobre a importância dos videoclipes, que impulsionaram o mercado fonográfico brasileiro. Muitos artistas consagrados voltaram ou se consolidaram na cena musical e ao mesmo tempo, bandas desconhecidas tiveram a oportunidade de aparecer em rede nacional – “É importante dizer que no início, a MTV produziu doze videoclipes por vontade própria e sem o apoio das gravadoras dos artistas, porque não existia o formato videoclipe no Brasil, o que havia eram produções para o Fantástico, em geral, ruins”. – lembra o produtor-chefe André Vaisman, citando alguns desses videoclipes, como o tão lembrado “Garota de Ipanema” e “Pólvora” dos Paralamas.

Também foi levantada a importância dos programas de parada diária, como o Disk MTV e o Top 20 Brasil, que também impulsionaram esse cenário pop e serviu de território comum para revelar novos talentos, onde as pessoas votavam no clipe, caso fosse de agrado coletivo, descartando a prática do jabá comum nas rádios – “Isso nunca houve na MTV, o jabá, ‘eu pago – você toca’, o que houve, raras vezes, foi a imposição por parte dos próprios artistas, como o Mano Brown pedindo que exibisse o clipe de sua banda, aí tocavam (risos)” – brinca André Vaisman.

Um fator que caracterizou a MTV Brasil foi o seu jornalismo libertário, no início comandado pelo Zeca Camargo e que foi composto restritamente por jovens que faziam televisão para jovens – “Foi dado uma liberdade para o jornalismo da MTV, por mais que isso, hoje em dia, possa parecer surpreendente em relação à Abril, especialmente por possuir títulos como Veja e Exame, o aval veio dos próprios diretores, Victor e Giancarlo Civita, que liberaram essa molecada fazer atrocidades” – André Vaisman frisa sobre a importância do jornalismo realizado na emissora, que era inédito na televisão brasileira, e também se tornou uma verdadeira escola.

Essa liberdade fez levantar muitas bandeiras sociais e trouxe discussões nunca levantadas e faladas abertamente antes na televisão, como por exemplo, o assunto da AIDS com as suas campanhas de conscientização. “A inovação e a ousadia sempre foram a marca do canal. Que outra emissora mandou o jovem desligar a TV e ler um livro ou falou com o jovem tão de perto sobre política e sexualidade?” – Marco Antonio, criador do grupo “Primórdios da MTV”, relembra também outros fatos relevantes dessa liberdade e irreverência da emissora.

5. Os artistas e “bota essa porra pra funcionar!”

Os artistas internacionais que se apresentavam no Brasil, sempre sentiam uma familiaridade em ver a MTV Brasil nas coletivas de imprensa, pois era a única referência deles. Exemplos, como a passagem do Guns N’ Roses pelo Rock in Rio II (1991), que descartaram toda a imprensa daqui (a Globo, inclusive) e Axl Rose concedeu uma entrevista apenas para a emissora. E assim também ocorreu na ocasião do festival Hollywood Rock em 1993, no auge do grunge, quando vimos a entrevista exclusiva de Kurt Cobain revelando ser fã da banda brasileira, Mutantes; e também vimos um dia de compras de biquínis com as meninas do L7 em Ipanema, no Rio.

Há também registros históricos dos finados artistas, Renato Russo e Mamonas Assassinas, em entrevista para o programa Top 20 Brasil. Se por um lado, Renato Russo era conhecido pela sua genialidade e ao mesmo tempo pela inacessibilidade devido à sua timidez, por outro lado, os meninos dos Mamonas esbanjaram muito humor, fazendo muitas piadas e brincadeiras até infantis.

Zico Góes, diretor artístico, relembra o piti de Caetano Veloso que havia se irritado com a microfonia durante seu show no VMB 2004, ao lado de David Byrne – “Usamos anos a fio a bendita (e bem dita) frase: ‘Bota essa porra pra funcionar!’, que se tornou um mote para seguirmos em frente”.

NOVA MTV, PRONTA PRA OUTRA?

É muito válido preservarmos essa história da MTV, mas também encaramos o fato da crise e do distanciamento gradativo do DNA do canal, ao longo dos anos, que era a música. Migrando e focando restritamente para os reality-shows, comédia e etc. Revelou outros talentos, sim, como o Adnet e outros, porém em termos de audiência era insignificante e a identidade do canal já estava perdida. – “Se nos últimos anos, eu não assistia tanto a MTV ou achava algumas coisas não tão boas, foi porque envelheci. Mas isso é um problema meu, não da MTV. Aos meus 13 anos, vi quando entrou no ar e aos 36, vi o encerramento. Vai fazer muita falta” – Marco Antonio assume essa mea culpa de telespectador.

André Vaisman só ressalta uma crítica em relação a essa volta da MTV à Viacom, a detentora do canal: “O problema não é a MTV ter migrado do aberto para o pago, e sim sobre a sua preservação histórica que provavelmente ficará no esquecimento e não virará uma referência, o hábito do olhar no ‘retrovisor da cultura’, infelizmente, não existe em nosso país”. O diretor de operações, Walter Pascotto, completa: “O que foi realizado nesse prédio foi algo que deu muito certo, fizemos a história, é um ciclo que se fecha nesse momento, e um outro que está por vir”.

No dia 30 de setembro, realmente vai cair a ficha…” – assim como Thunder, todos nós, os saudosistas, custamos a acreditar nesse fim, o dia da última transmissão já passou, a “nova MTV” já está no ar,  no canal pago, porém, ainda cultivaremos e manteremos vivo essa memória dos tempos áureos da emissora.

E foi a partir desse mesmo sentimento que Marco Antônio obteve a sua motivação ao criar o grupo “Primórdios da MTV”: “Temos uma memória afetiva com muita coisa do início da MTV. Falar dos primórdios nos conecta a estéticas e movimentos que vimos nascer e morrer. Conecta também a nós mesmos, pois muito do que gostamos e ouvimos hoje, em muito, tem a ver com o que aconteceu nesses primórdios”.

R.I.P. MTV Brasil.


>>> Saudades do Gastão? Confira o novo programa Heavy Lero, produzido e dirigido por Edgard, no canal do YT  e fanpage.

>>> Programas My MTV com os VJ’s no canal MTV Abril.

>>> Cobertura da Mídia Ninja no último dia da transmissão ao vivo.

>>> Grupo Primórdios da MTV no Facebook

(Fontes: Wikipédia, MTV Brasil, Canal MTV Abril, Mídia Ninja, Folha de S. Paulo e UOL. / Imagens: Wikimedia Commons, Domínio Público, © Reprodução YouTube)

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