Festival BR 135: três dias de calor humano e arte na rua

Festival BR 135

A revista Noize cobriu o evento maranhense que reuniu em São Luís, entre os dias 30 de novembro e 02 de dezembro, as bandas BaianaSystem (BA), Eddie (PE), Pinduca (PA), Muntchako (DF), Criolina (MA), Daniel Groove (CE) e Lurdez Da Luz (SP)

[Por: Ariel Fagundes | Fotos: Ariel Fagundes]

30/11: BaianaSystem e o começo da folia

É quinta-feira e acabou de anoitecer, mas faz calor como sempre no Centro Histórico de São Luís. Na Rua 28 de Julho, ouve-se um ritmo forte de tambor e cânticos de pronfudas vozes de mulheres e homens de idades variadas, os músicos que compõem o Bloco Afro Akomabu. Criado pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão em 1984, esse é o bloco afro mais antigo da cidade e é também um importante símbolo na luta contra o racismo e em defesa das expressões culturais populares. É ref(v)erenciando a ancestralidade de descendência africana do estado que se abrem os trabalhos da sexta edição do Festival BR 135. Na semana anterior, havia acontecido a primeira parte do evento, o Festival BR 135 Instrumental, mas agora começa a programação principal.

Até a noite de sábado, as vielas de pedra do bairro que transpira história recebem uma lista extensa de atrações. Baiana System, Pinduca, Eddie, Lucas Santtana, Lurdez da Luz, LaBaq, Dj Craca e Dani Nega, Muntchako, Rosa Reis, Orquestra Greiosa, Feminine Hi-Fi, Criolina, DJ Alladin & crew, Vinaa, Sammliz, Daniel Groove, Soulvenir e Brutallian tocam na Praça do Reggae, onde está armado o Palco Spotify, e na Praça Nauro Machado, que abriga o palco principal do evento.

É para lá que se dirige o Bloco Afro Akomabu por volta das 20h. A região já concentra uma plateia enorme e é intenso o fluxo de pessoas que circulam pelas quadras que estão repletas de vendedores ambulantes e grupos de policiais que caminham atentos. Também não faltam banheiros químicos em pontos estratégicos entre os palcos e a Feira Criativa e Gastronômica, área de alimentação oficial do BR 135 que acontece ao lado da Casa do Maranhão.

LaBaq

 

Hoje, o Palco Spotify não abriga nenhum show do festival porque está ocupado por outro projeto chamado Quinta do Reggae, que também atrai um público forte. Já na Nauro Machado, é a cantora LaBaq quem dá sequência ao line up do evento. Subir ao palco após a explosão contagiante dos batuques do Afro Akomabu não é tarefa fácil, mas a transição entre os tambores e as canções carregadas de texturas da artista de São Paulo é aceita com afeto pela plateia, inclusive uma parte expressiva dela nitidamente já conhece e admira o trabalho da cantora. No palco, LaBaq está completamente sozinha empunhando uma guitarra azul e orquestrando todo seu som com um contÌnuo apertar e desapertar de botões dos pedais de efeito que estão aos seus pés. As músicas do seu álbum Voa (2016) são cantaroladas por algumas pessoas e é bonito ver como LaBaq segura a atmosfera ao seu redor e prende a atenção de todos até o fim da sua apresentação.

Áurea Maranhão
Áurea Maranhão

Difícil precisar a estimativa de público presente porque há muita gente transitando o tempo inteiro, mas todas as ruas ao redor dos palcos estão cheias. Durante um intervalo para a mudança do palco, alguns milhares de participantes se voltam para a sua direção para ver o que está acontecendo. Ali, no meio da multidão, ergue-se Áurea Maranhão prestes a iniciar uma performance emblemática. Ali, aos brados, Áurea faz uma apresentação que cita o Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade e sua célebre frase “Tupy or not tupy, that is the question”, também declama a letra de “Todo Mundo Nasce Artista”, da artista paraense Aíla: “Todo mundo nasce artista / Depois vem a castração (…) E essa doença tem cura! / Existe uma salvação! / Faça arte! Faça arte! / Mesmo que sua mãe diga que não”. Sua voz tem algo de cortante, até porque o tom dela é de manifesto, de posicionamento firme. Sua performance se encerra com grande apoteose quando uma série de fogos de artifício sobem ao céu dando um tom dramático, mas também esperançoso, à apresentação.

Lurdez da Luz
Lurdez da Luz

Por volta das 22h, Lurdez da Luz assume o palco ao lado do DJ Craca, que também acompanhará Dani Nega no dia seguinte. O show de Lurdez é grave, é pesado, ritmado com beats dançantes e colorido por colagens instrumentais interessantíssimas. Músicas como “Ping Pong”, “Gana” e “Mamma Drama”, do álbum Gana pelo Bang (2014), e “Desse Jeito”, da época em que ela cantava na dupla Mercúrias, não deixam as pessoas ficarem paradas.

BaianaSystem
BaianaSystem

A atração seguinte, Baiana System, com certeza é a mais aguardada do festival por muita gente que veio ao evento. O relógio acaba de passar das 23h e a banda sobe ao palco arrancando urros de satisfação da multidão. Durante os shows anteriores, todos já estavam bem empolgados, mas, quando Russo Passapusso começa cantar e o resto da banda ergue sua parede de som, o público reage como uma fogueira quando recebe um jato de gasolina. Aqui, a coisa explode. Ao longo das próximas duas horas, o Baiana System comanda a massa como se isso fosse a coisa mais fácil do mundo. Conforme o show crescia, como em “Lucro” e “Duas Cidades”, muitos saem do controle e pulam e pulam e pulam como se não houvesse amanhã. Em alguns momentos do show, duas pessoas vestidas de cazumbá, personagem folclórico do bumba meu boi, ficaram se apresentando em frente ao palco. Russo não demorou para descer e interagir com os bois incendiando os ânimos de todos.

Cazumbá no show do BaianaSystem
Cazumbá no show do BaianaSystem

Difícil sair de lá sem estar encharcado de suor, e isso é só o começo. Amanhã tem mais.

1/12: Pinduca e o ápice da euforia

Boi da Fé em Deus
Boi da Fé em Deus

A segunda noite começa com muito mais gente presente nas ruas do que no dia anterior, que já havia sido lotado. É difícil caminhar em qualquer lugar sem se bater no mar de pessoas que bebem e dançam desde às 20h, quando abre começa a apresentação do grupo Boi da Fé em Deus na Praça Nauro Machado. Já no Palco Spotify, Craca e Dani Nega estão apresentando um show absurdamente envolvente. Todos dançaram em momentos como “Sou Preto Mesmo” e “Papo Reto” (ambas do disco Craca, Dani Nega e o Dispositivo Tralha, de 2016), faixas com letras pesadas que denunciam o racismo e o machismo institucionalizados em nossa sociedade. Seus beats que unem berimbaus a batidas eletrônicas estaladas com perfeita harmonia fazem a cama certa para a rapper destrinchar sua mensagem e fazer todo mundo dançar sem parar um segundo. O público maranhense foi tomado pelo show, que acabou com paródias politizadas de “Baile de Favela” (que virou “Baile de Panela”) e “Malandramente” (no caso, “Primeiramente”).

Craca e Dani Nega
Craca e Dani Nega

O Palco Spotify está cheio mas a Praça Nauro Machado está estourando de gente de todas idades. O movimento se explica por ser sexta-feira, mas também porque hoje tem show do lendário Pinduca. Enquanto Craca e Dani Nega estão tocando, a cantora maranhense Rosa Reis está fazendo no palco principal um show lindíssimo, repleto de bagagem tradicional da música negra local. Depois dela, é a Orquestra Greiosa quem assume e seu show transforma tudo em um grande carnaval eletrônico e eletrificado. Músicas como “Samambaia Verdinha” são excelentes para deixar uma multidão enlouquecida, é pura alegria em forma de um som experimental e ainda sim pop, com raízes fincadas na tradição e antenas ligadas no que há de mais contemporâneo. Depois disso, a locomoção entre os dois palcos, separados por poucas esquinas, torna-se um grande desafio. Enquanto a Orquestra Greiosa toca, no Palco Spotify, é o cearense Daniel Groove quem está dando um show de romantismo com sua força brega elegantíssima.

Orquestra Greiosa
Orquestra Greiosa
Lucas Santtana
Lucas Santtana

Já são cerca de 22h e agora a Nauro Machado recebe o show do baiano Lucas Santtana, que lançou há pouco o Modo Avião (2017). Chama atenção que, se por um lado o disco novo aponta um caminho mais reflexivo e introspectivo, o show dele não está seguindo essa linha. A apresentação é pra cima, animadíssima, caminhando entre o samba, as sonoridades nordestinas e a música eletrônica. Durante músicas como “Amor de Carnaval”, parceria de Lucas gravada por Pedro Mann, o baiano chega a descer do palco para agitar o povo. Paralelamente, no Palco Spotify, a banda maranhense Soulvenir faz uma apresentação bonita onde apresenta seu pop rock indie folk, que contempla a parte do público que talvez não esteja tão ávida por garantir um bom lugar para a apresentação seguinte do palco principal: Pinduca.

Pinduca
Pinduca

Quando essa lenda entra no palco, o Centro Histórico de São Luís treme. Há muita gente na frente do palco e nas ruas ao redor, afinal, um show do Pinduca, aqui, traz um sentimento nostálgico para a maioria das pessoas. Todos foram impactados pela música dançante do Rei do Carimbó durante sua vida – até porque é quase certo que o Pinduca é a pessoa mais velha presente. Ou melhor, velha na carteira de identidade, pois, do alto dos seus 80 anos, Pinduca está com mais energia do que muito garoto por aí. O músico entra no palco por volta das 23h e, pelas próximas duas horas e meia, não para de tocar e dançar. Nesse show, em frente ao palco, há alguns homens cadeirantes e é emocionante vê-los dançando demais com suas cadeiras acompanhados por diversas parceiras de dança. No fim do show, Pinduca chega a fazer uma homenagem a um deles de cima do palco dizendo que ele é o melhor dançarino da noite, mas antes disso o Rei tocou o terror: seu show emenda várias músicas seguidas em uma atitude completamente punk rock; também conta com concurso de dança onde três casais disputam um disco dele; em outro momento, Pinduca chama uma produtora dos backstage para dançar; depois ele desce do palco e borrifa um óleo perfumado na plateia para atrair amor e dinheiro. Detalhe: teve gente que não ganhou nem uma gotinha e ficou reclamando. Entre o gigantesco setlist da lenda, “Dona Mariana” e “Marcha do Vestibular”, que fecha seu show, podem ser destacas como momentos altos.

O concurso de dança do Pinduca
O concurso de dança do Pinduca

 

Hora de Pinduca perfumar o público
Hora de Pinduca perfumar o público

 

Agora o jeito é recuperar as energias para o próximo dia, que já vem aí.

2/12: Eddie e a despedida da fanfarra

No sábado, há bem menos gente do que ontem, que estava incrivelmente cheio, mas ainda assim é um público maior do que o de quinta. Hoje também há varias atrações, algumas descentralizadas dos palcos principais. Esse é o caso da Radiola Reggae e Rádio Zion, um sistema que foi armado nas escadarias do Beco Catarina Mina. Muita gente nem faz questão de ver os shows principais e fica aqui mesmo porque, com a música que está sendo tocada, a escadaria se torna por si só um palco bastante sedutor para quem quer dançar reggae a dois ou apenas tomar uma cerveja mais sossegado.

O Palco Spotify começa com uma banda de heavy metal maranhense chamada Brutallian, que, se comparada ao resto do line up, soa um tanto deslocada, no entanto não deixa de ser surpreendente o desejo de pluralizar o máximo possível as sonoridades do evento. A festa na Nauro Machado começa um pouco atrasada com a apresentação do tradicional bloco de carnaval Fuzileiros da Fuzarca, que foi fundado em 1936. O grupo percorre algumas quadras até chegar ao palco principal onde, em seguida, começa o show da artista paraense Sammliz, que acabou de lançar com Dona Onete a faixa “Deusa da Lua (Mulher Perigosa)”, um rock n’ roll eletrônico e experimental com sotaque do Norte.

Feminine Hi Fi
Feminine Hi Fi

No outro palco, a dupla de São Paulo Feminine Hi Fi, formada pela cantora Laylah Arruda e a DJ Dani I-Pisces, tocou uma seleção pesadíssima de reggae, incluindo várias composições de Laylah, como a recente “Loba Leoa”. Estamos na Jamaica Brasileira e é claro que o público maranhense abraçou forte o show da dupla. Depois delas, vem um dos shows mais ovacionados pelo público: DJ Alladin e Crew. Mas é que não é qualquer crew, o grupo é formado por quatro cantoras queer talentosíssimas que possuem um público forte de fãs: Frimes, Enme Paixão, Butantan e Only Fuego. O público está completamente louco aqui, gritando coisas como “Frimes, eu te amo” e dançando até se acabar. No set delas, houve alguns covers, de artistas como Linn da Quebrada, IZA e Rihanna, e também espaço para as cantoras apresentarem suas músicas autorais, como “Revis” (de Enme e Frimes) e “B.O.Y” (de Only Fuego e Butatan).

DJ Alladin e Crew
DJ Alladin e Crew

Até por ser menor, o clima do Palco Spotify esta mais quente do que o da Praça Nauro Machado nesse momento. A banda de Brasília de Muntchako acaba de subir ao palco principal e, no início do show, há uma certa dúvida do publico sobre como entender a banda. Mas a questão é que essa banda não é pra entender, é para sentir: após poucos acordes e algumas batucadas, a plateia se entrega à mistura única do trio, que consegue unir funk carioca, tango, afrobeat, soul, tecnobrega, sonoridades caribenhas e música eletrônica. Boa parte do show é instrumental ou conta com poucas intervenções vocais, ou seja, é o momento perfeito para deixar o corpo se mexer sozinho e apenas transcender.

Muntchako
Muntchako
Vinaa
Vinaa

Os shows do palco principal estão um pouco atrasados em relação ao cronograma inicial, mas isso não parece ser um problema para o público. No Palco Spotify, é o maranhense Vinaa quem fecha a programação com uma apresentação bastante surpreendente onde toca canções do recém lançado disco Bordel de Amianto (2017). As composições são tão românticas quanto provocadoras ficam ainda maiores considerando a energia da banda ao vivo e a performance de Vinaa, que é acompanhado por um casal de dançarinos no palco. Algumas quadras à frente, é a Criolina que está fazendo a alegria da Praça Nauro Machado tocando músicas presentes em seu disco mais recente, Radiola em Transe (2016), mas também algumas mais antigas e até mesmo um ou outro cover, como do clássico “You Don’t Love Me (No, No, No)”. Formada por Alê Muniz e Luciana Simões, a dupla está tocando ao lado de cinco músicos excelentes e é impossível não ser contagiado por sua união suingada de reggae com funk, sonoridades nordestinas e música popular brasileira.

Criolina
Criolina

O último show do BR 135 é o da banda pernambucana Eddie, que entra no palco deparando-se com uma multidão sedenta pelo original Olinda style. É impressionante a quantidade de gente que estava cantando junto músicas como “Ela vai dançar” e “Quando a Maré Encher”. Logo no início, o vocalista Fábio Trummer pede a organização que empurre a grade que separa o público do palco principal mais para frente, assim a galera fica mais colada aos músicos e, acredite, tudo fica mais quente ainda. Assim como nas noites anteriores, o último show é longo e todo mundo acompanha até o final sacudindo o corpo inteiro.

Eddie
Eddie

Quando essa maratona acaba, talvez seja uma boa hora para ir embora descansar? Impossível, logo em seguida um pequeno grupo de fanfarra desce a rua lateral à Nauro Machado e imediatamente uma massa de pessoas é atraída a ele como se os músicos fossem um ímã. Não tem jeito, todo mundo já entendeu que o jeito agora é se divertir até o limite, algo que o pessoal no Maranhão sabe bem como fazer.

A euforia baixa gradualmente ao longo das horas seguintes e o todos saem do Festival BR 135 com o sentimento nítido de que precisamos cada vez mais de eventos que ocupem com vida e cultura áreas sub-utilizadas das capitais brasileiras.

*Publicado originalmente no site da Noize

 

 

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