Coletando memórias, Walter Carvalho conta como inventou o seu Raul

Vavá Ribeiro/Divulgação
O diretor Walter Carvalho, que refez a trajetória do roqueiro baiano maluco beleza

[Por Ana Paula Campos]

Paulo Coelho diz que Raul Seixas é uma lenda, e lendas não têm histórias, mas mitos. Ainda assim, o escritor e grande parceiro do artista ajuda a contar aquela que, talvez, seja até hoje a história mais completa sobre a vida e obra do cantor, o documentário “Raul: o Início, o Fim e o Meio”, dirigido por Walter Carvalho.

Idealizado por Denis Feijão, o filme imerge no universo do ícone performático e provocador de Raulzito no palco, sem deixar de fora o lado carinhoso e gentil.

Com relatos emocionais e reveladores, amigos de infância falam da obsessão de Raul por Elvis Presley e da sua primeira banda, Os Panteras; parceiros e colegas revelam o seu modo de compor, o vício em cocaína e o alcoolismo. Já as ex-mulheres revivem o convívio com o pai do rock brasileiro, que morreu aos 44 anos, em 1989.

Walter Carvalho foi convidado a dirigir o projeto em 2008. Contemporâneo de Raul, o cineasta, de 65 anos, compartilhou algumas influências com o cantor, como a paixão por Elvis e a contracultura. Com mais de 400 horas de entrevistas, o diretor faz a sua representação do artista. “A partir da memória de pessoas ligadas a Raul Seixas e da minha própria, eu inventei o meu Raul.”

O que te levou a aceitar o convite para dirigir o projeto? Em uma entrevista sua, vi que o fato de os seus filhos ouvirem Raul foi um grande motivo.

O Raul é um personagem ícone. Fiquei interessado por ter convivido, não com o Raul, mas com o sucesso do Raul. Eu tenho um filho com 34 anos e outro com 22, e os dois ouviram Raul na adolescência, em tempos diferentes. O Raul esteve sempre presente na minha vida. Depois, pesquisando, fui descobrindo coisas comuns entre nós dois, como a identificação com o Elvis Presley. O Raul viu “Balada Sangrenta” [filme de 1972 estrelado por Elvis] durante 20 dias seguidos. Eu não cheguei a esse absurdo (risos), mas vi algumas vezes também, na mesma época. Eu, em João Pessoa, quando era garoto, e ele em Salvador, também garoto. E, além desses pontos comuns, o fato de ser um artista libertário, contestador, provocador, instigante, performático, que se comunica muito bem com o público e que está inserido na história da contracultura e da música popular brasileira, no final dos anos 1960, inicio dos anos 1970.

Quando você aceitou, tinha algum objetivo claro em mente? Tipo, desvendar o Raul ou chamar a atenção pra obra dele ou fazer com que pessoas que não escutassem Raul tivessem vontade de conhecê-lo de verdade, além dos sucessos…

Eu não tinha nada preparado, nada pré-estabelecido. Em geral, o próprio filme especula, descobre, examina, pesquisa o tema que eu estou trabalhando. A descoberta do que virá a ser aquele filme surge no processo de filmagem. No caso do Raul, uma coisa que teve uma característica muito forte na feitura do filme são as entrevistas. Eu inventei um Raul a partir da memória -da minha e da de quem eu entrevistei, ora familiares, ora amigos, ora parceiros, ora produtores. A partir da memória dessas pessoas e da minha própria, é que eu inventei o meu Raul, o Raul do Início, o Fim e o Meio, que é o meu filme.

Era isso mesmo que eu ia perguntar. Nos extras desse boxe especial que foi lançado nesta semana, o Roberto Menescal fala que são muitas as verdades e as versões. Como é trabalhar com lembranças? É uma questão de escolha mesmo? Há muitas divergências de versões?

Em um documentário, você trabalha com construção, com representação. O meu compromisso não é com a verdade, é com a representação da verdade. Você trabalha com fatos, mas a partir da memória, e, em se tratando da memória, é sempre vulnerável. A memória não é uma construção científica, não é uma ciência exata. Ela trabalha com pensamentos, com vestígios. Trabalhar com vestígios da memória é trabalhar com construção. Um filme é diferente de uma reportagem. Quando você trabalha com uma reportagem, você trabalha com o real. Quando você trabalha com documentário, você trabalha com a construção, você reinterpreta, você se encontra de novo com a memória. Ainda mais em se tratando de um artista que não está vivo. Quando o artista está vivo, você tem a grande possibilidade de lidar com ele. Não que seja mais fácil, mas é mais rico. Na medida em que você tem, à disposição, a própria pessoa diante de você. É como se ela contivesse a verdade. E a verdade é de cada um. Ela não existe sozinha. A verdade caminha de braços dados com a mentira.

Você já disse em entrevistas que o Raul era um ator…

O artista cantor, compositor, também representa, também é um personagem. Há um Raul assumidamente representado naquele palco. Havia nele uma atitude performática de exibir o corpo, de fazer do corpo parte da sua música. Tem uma em que ele diz “Eu sou um ator” [“Metamorfose ambulante”]. O Raul extrapolava isso, porque ele assumia o lado performático e provocador dos palcos. E há quem diga que o Raul na intimidade do lar, dos amigos, era uma pessoa diferente.

Nos extras, tem fotografias das suas anotações. Uma era “Palavras que envolvem este filme”. Só dá pra enxergar a primeira, “antagonismo”. Por que você escolheu “antagonismo” e quais outras palavras você usaria pra definir um pouco o Raul?

O Raul tem uma postura antagônica a si próprio. O Raul é um paradoxo dele mesmo. O Raul vai e volta. O Raul fez rock, balada, bolero, valsa, tango. A música que encerra o filme é um tango [“Canto para minha morte”]. Ele vai e volta no tempo e no espaço da sua própria criação… Deixa eu ver aqui (procura a anotação)… É que já faz tempo. É uma anotação escrita a mão, não é?

Isso mesmo.

Eu acho que tá por aqui. Isso é uma mania, ou pelo menos uma forma que eu tenho de trabalhar como fotógrafo ou como diretor. Anotar palavras que me remetem ao tema, à pessoa com quem eu estou trabalhando.

No que isso te ajuda?

No conceito. (Acha a anotação sobre o Raul) Eu anotei antagonismo, racional, objeto lógico, apaixonado -porque eu acho que o Raul morreu por amor-, carnal, polêmico, inexplicável, rebeldia, instabilidade, desobediência civil, impulso criativo, doçura, do satanismo ao alcoolismo. Essas palavras me acompanham. Elas vão nascendo na medida em que eu vou trabalhando e passam a ser palavras-chaves, índices, de determinados momentos. Antagonismo ou qualquer outra palavra que eu tenha anotado remete para dentro do filme de uma forma abstrata. Nada de forma muito realista, compromissada com a realidade. Pelo contrário. Quero passar a sensação que eu tenho quando a subjetividade de um artista me interessa. E o que me interessa é a subjetividade do artista. Se eu estou diante de um quadro, o que me interesse são os caminhos subjetivos que levaram àquele quadro. Diante de um filme, é a mesma coisa. E se eu estou diante de um processo criativo meu, eu quero me fazer entender através da minha subjetividade. O real é muito pobre. A natureza do real por si é desinteressante. O que é interessante é o que tá por trás do real, o que você não conhece. A função dessas palavras é criar uma conceituação.

E por que você acha que ele morreu por amor?

Eu acho que ele tinha um grande amor, que foi o primeiro [Edith]. Ele, dedicado à boemia, conheceu uma outra pessoa, e a impressão que me dá era a de que ele achava que voltava praquela pessoa a hora que ele quisesse. E na hora em que ele quis voltar, a pessoa não quis. E ele ficou o resto da vida procurando essa volta. E nunca mais conseguiu. Inclusive com a própria filha, que foi embora para morar nos Estados Unidos, porque a mãe era americana. A mãe dele dizia que, toda vez que falava da filha e da mulher, ele chorava. Eu acho que o Raul morreu por amor. Isso é uma opinião minha.

Em entrevista à revista TPM, a Kika Seixas diz que uma coisa que ela discorda do documentário foi o lance de mostrar o Raul como um mulherengo. Alguma das ex-mulheres foi falar com você depois do filme? Elas se manifestaram de alguma forma?

Não, nunca me disse isso… Um filme nasce quando você escreve, ele morre quando você filma e ele renasce quando você entrega ao público. Ao entregar ao público, o filme não é mais seu. O filme pertence à vida. Portanto, as pessoas que assistem a qualquer filme meu estão inteiramente à vontade para ter uma opinião sobre o filme, para fazer algum tipo de elogio, crítica ou o que bem lhe convier, porque o filme não é mais meu. Você não pode, nem deve, de forma nenhuma, nem em pensamento, querer controlar a opinião das pessoas sobre o que você faz. Isso tanto no nível do cinema como de todas as artes.

Quais foram as suas inspirações pra fazer o documentário?

Eu me inspirei um pouco no “Easy Rider”, do Peter Fonda e Dennis Hopper [No Brasil, o filme de 1969 é conhecido como “Sem Destino”], na contracultura, na música do Luiz Gonzaga cruzando com Elvis Presley, que por sua vez cruza com Jackson do Pandeiro.

O documentário transcende a biografia do Raul, ele traz uma série de reflexões. Foi uma busca intencional ou foi uma consequência natural depois de todo esse processo de imersão?

Foi intencional. Eu acho muito chato fazer e ver uma biografia. E como eu acho enfadonho, eu evitei as questões biográficas, mas não evitei as questões de referências biográficas. O Raul é narrado em dois planos, em duas cortinas, uma da vida privada e uma da vida pública. A cortina da vida privada é uma cortina que narra o Raul cronologicamente. E a da vida pública é fora de ordem e fragmentada. Há uma tentativa de fazer com que o espectador, ao ver o documentário, tenha a sensação de que está seguindo o nascimento do Raul, a sua vida e a sua morte, não necessariamente nessa ordem. Porque a narrativa avança no tempo e volta no espaço. Aí você tem um sentido cronológico, mas também um sentido fragmentado da vida do Raul… Ou pelo menos do pedaço da vida do Raul que eu consegui contar.

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